MACACO VELHO NÃO PULA EM GALHO SECO

Em Fevereiro deste ano o consagrado escritor Laurentino Gomes, autor entre outras obras do best-seller “1822”, se deslocou a Portugal para lançar o segundo volume da trilogia "Escravidão" e na apresentação de sua obra afirmou que "um pedido de perdão em relação à escravatura seria muito bom, seria muito benéfico para Portugal porque seria libertador”...  

E quanto a isso, com o devido respeito pelo Autor, gostaria de dizer o seguinte;  

Importará talvez aqui recordar a Laurentino Gomes e a todos aqueles que pretendem demonizar Portugal como tendo sido o recordista do trafico negreiro entre África e as Américas, que o auge desse horrível flagelo esclavagista terá acontecido entre os anos 1826 e 1850.   

(fonte:  https://www.https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates?fbclid=IwAR1FsCE7iYhz6JsmC0EZTrIRAKJ3Xvg9CrjP27bz-QPKoH9J9s6p41tF75w.org/assessment/estimates 20/03/22)   

Seguramente por lapso Laurentino Gomes também se terá esquecido de referir que nessa altura Portugal já não tinha colónias nas Américas. Acontece a todos...   

Como é do conhecimento comum, o Brasil já se tornara independente a 7 de Setembro de 1822, o que quer dizer que a maioria do tráfico de escravos foi feito por e para um novo país chamado Império do Brasil.    

Ou seja, não foi Portugal (sozinho) que escravizou e traficou 5,8 milhões de pessoas africanas. Muito menos foi Portugal (sozinho) que escravizou e traficou os 2,5 milhões de africanos que, no século XIX, atravessaram o Atlântico em direção ao Rio, a Pernambuco e a Salvador.   

Foram sim Portugal, o Brasil e muitos reinos africanos, que já tinham escravizado aquelas pobres pessoas antes de as venderem para a costa e, daí, para os porões dos navios negreiros.    

Não vamos agora branquear a história só por que nos convém. Tentemos ser minimamente coerentes!    

Dir-se-á que boa parte do tráfico de escravos realizado entre 1826 e 1850 foi levado a cabo por negreiros portugueses residentes em cidades brasileiras, homens como José Bernardino de Sá, Tomás da Costa Ramos, Manuel Pinto da Fonseca e vários outros e que, num determinado período, entre os anos 1830 e 1840, esse tráfico foi em larga medida feito sob a proteção da bandeira portuguesa, que se obtinha no consulado português no Rio de Janeiro, por meios ilícitos e fraudulentos.   

Ainda que não encaixe bem no discurso predominante da doutrina 'woke' que domina hoje o Brasil, a verdade é que foi assim!   

Valetalvez a pena aqui transcrever um breve trecho do livro de David Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade:   

“No início de 1859, vários marítimos espanhóis e portugueses viajaram de comboio, de Londres a Hartlepool, um porto na costa nordeste inglesa, para aí receberem e tripularem o Wilhemina, um recém-construído navio a vapor. Navegaram nele até Cádis e daí até à costa ocidental africana, onde adquiriram um carregamento de escravos que, depois, desembarcaram em Cuba. Nos quatro anos seguintes, este e outros vapores de construção inglesa fizeram várias viagens negreiras. Muitos desses navios eram propriedade de uma sociedade por ações com sede em Cuba e acionistas de várias nacionalidades. Tinha uma rede de agentes que ia de Nova Iorque a Quelimane. Os escravos levados para Cuba eram vendidos a produtores de açúcar que já utilizavam a mais sofisticada maquinaria de construção britânica, e o açúcar que produziam era vendido para os países mais desenvolvidos”.   

Ou seja, no século XIX o tráfico transatlântico de escravos foi uma actividade multinacional, ligada a uma economia global e que se servia de tudo o que havia de mais moderno no mundo de então.   

Seguramente por desatenção minha, também não li na obra de Laurentino Gomes, depois de ter diabolizado os lusos, um simples estudo comparativo, desde a idade Moderna até à Contemporânea, com as datas em que cada país aboliu essa hedionda instituição que foi a escravatura. Por isso, apesar de não ter a capacidade nem os conhecimentos de tão insigne investigador, resolvi eu mesmo faze-lo; 

Quem inicia o processo abolicionista na Europa – espantem - foi Portugal, com a libertação dos Ameríndios sob o domínio português, com o rei D. Sebastião, impulsionado pelos jesuítas, em 1570. Em 1590, no Japão, também os lusos, libertaram todos os escravos japoneses e chineses após o fim do Período Sengoku. Sucedeu novamente em Portugal com a abolição do tráfego de escravos chineses em 1595. Já em 1761, o Marquês de Pombal, no reinado de D. José, decreta o fim da importação de escravos das colônias para a metrópole (negros e indianos). 

Os restantes países europeus só seguem o exemplo luso em 1792, com a Dinamarca aprovando a “Lei da Abolição” dando por terminada a escravidão com negros. No Haiti (1794) quando este ainda era uma colônia francesa, aboliu a escravidão por ordem de Napoleão Bonaparte. De 1801 a 1815 acontece o mesmo processo nos Estados Unidos da América com as “Guerras Berberes” perante os Piratas da Barbária (escravidão branca). Se seguem a Holanda em 1821 (negros) e a República Dominicana em 1822 (negros e tainos). 

Chegou a vez do restante da América Central e do Sul, quando o Chile (1823) aplica a “Lei da Abolição da Escravidão Chilena” assim como Honduras, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica e Guatemala no ano de 1824 a abolirem a escravatura de negros. Em seguida, a Bolívia (1826) e o México (1829) por parte de afro-mexicanos pelo independentista mexicano Vincente Guerrero. 

Na Europa o Reino Unido prossegue com a mesma mudança aprovada pelo seu Parlamento e no Paraguai e Uruguai (1842) igualmente. A França decretou o mesmo na Proclamação da Segunda República Francesa (1848) e em 1851 foi a vez do Equador e da Colômbia. A Argentina fez o mesmo em 1853 com os negros e afro-argentinos. No ano seguinte a Venezuela, Peru e Portugal (afro-portugueses) (1854) e a Rússia para com os brancos em 1861. Em 1863 foi a vez do Império Colonial Holandês.   

NA: Como dá para entender também havia, até aos meados século XIX, esclavagismo de branco. Mas, como não era aqui no Brasil, isso agora não importa para nada... o estrangeiro só interessa mesmo quando é para emigrar ou para visitar, não é não? Ou então para retirarmos os exemplos que nos convém, como foi aquela vez em que a  ex-deputada Manuela D´Ávila (PCdoB-RS), inconformada com o fato de seu ídolo Fidel Castro ter falecido justamente numa Black Friday, o dia que é símbolo do consumismo mundial, resolveu falar a bobagem que o iPhone foi inventado na URSS e fazendo piada com "comunista come criancinha", ou seja, zoando com o Holodomor, conhecido como a Grande Fome, que foi um período de fome (em que não havia NADA para comer) na Ucrânia Soviética, de 1932 a 1933, que causou a morte de milhões de ucranianos. Tem gente que ainda leva certas bobagens a sério.

No 1° de janeiro de 1863, entrava em vigor o Ato de Emancipação nos Estados Unidos da América, assinado pelo presidente Abraham Lincoln, no qual o ponto central da lei era a libertação de cerca de 4 milhões de escravos negros. A Guerra Civil Americana, (também conhecida como Guerra de Secessão ou Guerra Civil dos Estados Unidos) foi uma guerra travada nos Estados Unidos, de 1861 a 1865, entre a União e os Confederados. Sua causa principal foi a longa controvérsia sobre a escravização dos negros. Calcula-se que entre mortos em batalha, civis por inanição ou doença provocada pela guerra tenham morrido cerca de 1M de americanos durante os 4 anos que durou este conflito.   

Aboliram o Zanzibar (1873), Gana (1874), a Turquia (1876) e Cuba (1886).  

Finalmente, só a título de curiosidade, os últimos casos de abolição foram os de Marrocos (1956), Arábia Saudita (1962) e finalmente Mauritânia (1981)... só para que se saiba! 

(Fontes: https://www.britannica.com/place/western-Africa/French-territoriese https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000098493 20/03/22) 

O que dizer então da promulgação da Lei Áurea, oficialmente Lei n.º 3 353 de 13 de maio de 1888, que extinguiu oficialmente a escravatura, tornando o Brasil o último país independente da América Latina e do Ocidente a abolir completamente a escravidão, 66 anos após a sua independência?   

Mas a pergunta que não quero calar: Se o Brasil se torna independente a 7 de setembro de 1822, porque é que levou mais de seis décadas a abolir a escravatura, quando, por exemplo a escravidão foi abolida oficialmente na Argentina em 1853 ou na Venezuela em 1854? A quem pertenceram os escravos durante estes 66 anos, a portugueses ou a brasileiros? As fazendas e os engenhos, depois da independência e até 1888, que continuaram a utilizar mão de obra escrava, eram eles propriedade de lusos?   

Logo, se há pedidos de desculpas a apresentar quem vai começar por onde???    

NB: Não estou a querer passar o pano sobre o papel que Portugal teve (que indiscutivelmente teve) enquanto potencia colonialista, na escravatura e no tráfico de pessoas transatlântico. Faz parte da sua História e da era dos ‘Descobrimentos Portugueses'. O que eu acho é que todo o estudo histórico, político e sociológico deve ser conduzido com isenção e com imparcialidade e as responsabilidades atribuídas a quem de direito. Me recuso aderir a agendas politicas, seguir movimento social “trendy” e a diabolizar “quem não está cá” para desculpar os nossos próprios erros. Isso é que não!   

Até porque, em minha opinião, o povo brasileiro em geral e a sua elite intelectual em particular vive um eterno desalento, um desgosto por vezes mal disfarçado, com as origens históricas do Brasil. Há como que um desconforto subtil, mas muito presente, com o facto do poder colonial ter sido português, e não como eles tanto desejariam inglês, francês ou até mesmo holandês. Este sentimento é transversal à sociedade brasileira... é muito curioso!    

Ao longo do século XIX no Brasil Império, com as vagas de imigrações (nomedamente europeias) surgiria um novo tipo de brasileiro, as primeiras gerações de ítalo-brasileiros, germano-brasileiros, sírio-brasileiros, nipo-brasileiros, libanês-brasileiros, etc. que como forma de se afirmarem no novo país e para manifestarem não ter qualquer vínculo sanguíneo e cultural ao povo luso, procuraram denegrir e diminuir a imagem do antigo colonizador.  Totalmente compreensivel...

Verdade seja dita que as vagas de emigrantes lusos, entre 1822 e 1950, no âmbito dum projecto de investigação levado a cabo pela Secretaria da Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado do Rio de Janeiro, através da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo sobre “Emigração de Portugal para o Brasil” permite concluir que a maioria (senão a totalidade) eram praticamente analfabetos, por contraposição a emigrantes de outras origens, designadamente da Europa Central.   

(fonte: https://www.cepese.pt/portal/pt/projectos/tt-concluidos/emigracao-do-norte-de-portugal-para-o-brasil.20/03/22)   

Dai facilmente se compreende a criação do estereotipo do português lerdo como o “Seu Manuel e o Seu Joaquim”, a “mulher de bigode”, o “burro de carga”, o “padeiro” e o surgimento das célebres piadas de carácter manifestamente xenófobo e preconceituoso...   

Termino lamentando o fato de, hoje em dia, em Portugal, muitos dos imigrantes brasileiros serem a continuidade deste lamentável processo cultural, também eles descendentes de escravos e de indígenas aculturados pela nova sociedade brasileira e que transportam ainda neles esse rancor ao passado histórico colonial, mas tenhamos consciência que se essa raiva permanece viva até hoje é graças a pessoas como Laurentino Gomes!   

Como bem ensinava Roy T. Bennett “O passado é um lugar de referência, não um lugar de residência; o passado é um lugar para aprendermos, não para vivermos.” Urge criar pontes entre os dois países com quase 522 anos de relações fraternais e muita história em comum... e não as queimar!   

Ora pois...   

Foto by Melvin Quaresma