Por vezes estas tentativas de reescrever a história acarretam consequências que nem as mentes superiores não conseguem prever.
O conceito (jurídico) equacionado por uma certa academia brasileira, bem assim como por certos movimentos sociais de esquerda, que "ensinam" que Portugal, a partir de 1500, "invade" e "conquista" o território que hoje conhecemos como Brasil, não só é curioso como bastante interessante, pelo que me proponho, hoje, aqui analisá-lo.
Até porque como já dizia Albert Einstein “As mentes brilhantes encontram sempre oposição de mentes medíocres…”
Porém, uma nota prévia, que fique bem claro que os portugueses não inventaram o conceito de “invasão”, nem tão pouco o de “genocídio” (não vamos aqui entrar na discussão da “apropriação cultural” uma vez que estes conceitos jurídicos foram concebidos por europeus. Deixaremos isso para outra ocasião), como por vezes alguns mais entusiastas gostam de adjetivar o colonizador luso. Pelo menos os indígenas das Terras de Vera Cruz não ficaram extintos como os Maias, os Incas ou os Aztecas.
Mais, recordo que séculos mais tarde, já na República Federativa do Brasil, alguns ítalo-brasileiros ou germano-brasileiros vêm a descender de líderes fascistas ou de nazistas que encontraram exílio seguro no Brasil, mas que haviam antes gazeado judeus em campos de concentração durante a segunda guerra mundial, isso sim um verdadeiro genocídio que envergonha, ainda hoje, toda a humanidade (a este propósito recomendaria, entre outros, a leitura de “A fuga dos Nazis” de Eric Frattini; “O Desaparecimento de Josef Mengele” de Olivier Guez ou “O fascismo Italiano e o Estado Novo Brasileiro” de Almeida Moura).
Duma forma sucinta, diríamos que hoje a corrente dominante do pensamento brasileiro assenta no fato que os portugueses, a partir de 1500, invadem e ocupam o Brasil, aí permanecendo até 7 de Setembro de 1822 como forças de ocupação, qual tropas nazistas alemãs numa Europa ocupada durante a segunda guerra mundial.
Durante essa ocupação militar praticaram crimes hediondos tais como: a escravatura; a execução de patriotas brasileiros (Revolta de Felipe dos Santos, Revolta de Beckman, Inconfidência Mineira, Conjuração Baiana); locupletação de recursos alheios (nomeadamente o "roubo do ouro"); crime de genocídio de população indígena; invasão e ocupação de território já habitado por povos com línguas e culturas próprias.
De nada adiantaria aqui argumentar que o Brasil não foi caso único!
Pasme-se que vg. só a Península Ibérica (para circunscrever a análise) é habitada há milhares de anos. A doutrina dominante defende que o primeiro povo a habitar a península ibérica foi um povo oriundo do centro da Europa, denominado celta, que ao se estabelecer na Península se passou a designar por celtibero. Estamos nos finais da Idade do Bronze, ou seja, no século XIII A.C.
A conquista romana da Península Ibérica se iniciou no contexto da Segunda Guerra Púnica (guerra contra Cartago), 218−201 A.C., quando as legiões romanas, sob o comando do Cônsul Cneu Cornélio Cipião Calvo, para ali se movimentaram taticamente, a fim de atacar pela retaguarda os domínios de Cartago na região. Não foram propriamente pacifistas, como era próprio da PAX ROMANA. Crucificaram, lançaram aos leões e escravizaram muitos celtiberos como era próprio dos romanos!
Em 410 D.C.o rei bárbaro Alarico conquista a cidade de Roma e se dá a queda do Império Romano de Ocidente. No que à Península Ibérica concerne, esta é invadida e conquistada pelas tribos bárbaras dos Vândalos, dos Suevos e dos Alanos, nas regiões da Lusitânia, que correspondem hoje ao Centro e Sul de Portugal, de Cárceres, Badajoz e Salamanca, além da Segóvia e Madrid foram os Visigodos que, por mais tempo, ocuparam o resto da Espanha.
Em 711 se dá início à invasão islâmica da Península Ibérica, também referida como invasão muçulmana ou conquista árabe. Este período se refere a uma série de deslocamentos militares e populacionais ocorridos a partir de 711 até 713, quando tropas islâmicas oriundas do Norte de África, sob o comando do general berbere Tárique, cruzaram o estreito de Gibraltar e penetraram na Península Ibérica. Venceram Rodrigo, o último rei dos Visigodos da Hispânia, na batalha de Guadalete, terminando assim o Reino Visigótico (Cristão).
Nos anos seguintes, os muçulmanos (islamitas) foram alargando as suas conquistas na Península, se assenhoreando do território designado em língua árabe como Al-Andalus, que governaram por quase oitocentos (800) anos.
Por último, em 1143, a partir dum pequeno territóriono norte da Península Ibérica, um conde se proclama Rei de Portugal e à força da espada reconquista os territórios que séculos antes os islamitas haviam invadido e ocupado... o resto é História!
Mas, centremo-nos agora na figura do “Marco Temporal” definida por vários Acórdãos do Supremo Tribunal Federal, que por polémicas várias volta agora à agenda do dia.
Vejamos;
Quando a Constituição brasileira de 1988 define e consagra no seu artigo 231º os direitos dos povos indígenas brasileiros, para além das questões culturais a Constituição define ainda os polémicos direitos originários dos índios, nomeadamente no que diz respeito às suas terras. Neste ponto é afirmado pela própria Constituição que os direitos originários dos povos indígenas sobre parcelas do território são definidos pelas “terras que habitualmente ocupam”. E na prática o que são “terras que habitualmente ocupam”?
Ora, também aqui a Constituição brasileira tenta dar uma resposta referindo no §1 que as terras que habitualmente ocupam são aquela sem que os indígenas habitam com carácter permanente. A interpretação destes termos constitucionais tem sido bastante polémica, sobretudo junto da comunidade Indígena. O famoso Acórdão do Supremo Tribunal Federal (Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239, julgada em 8 de fevereiro de 2018) vem criar um novo conceito chamado “Marco Temporal”.
Ora, segundo este conceito, só poderão ser consideradas terras Indígenas aquelas que as tribos ocupavam com carácter permanente em 1988, ou seja, na data de entrada em vigor do artigo 231º da Constituição de 1988. Na prática o Acórdão do STF utilizando o argumento “da segurança jurídica” vem dizer que mesmo que os povos indígenas ocupem novos territórios com carácter permanente a partir dessa data eles nunca poderão ser considerados território indígenas, ou seja, se analisarmos este Acórdão doutra perspectiva podemos mesmo dizer que o STF quer referir que em 1988 ficaram definidos os limites máximos das terras indígenas... ora não é difícil de perceber o porquê de existir polémica em relação a esta posição...
Especialmente quando a nova “visão” criada retrata os descobrimentos realizados pelos navegadores portugueses não como o que habitualmente se apelidava por "descobrimentos”, mas sim por “conquista”, "chacina” e “ocupação estrangeira”. Porque ao seguirmos esta linha de orientação que marca a doutrina agora vigente (que eu não aceito) Pedro Alvares Cabral “invadiu e conquistou” para os portugueses o território que hoje constituiu o Brasil, mas que legitimamente continua a pertencer aos indígenas, dai a expressão “roubaram o nosso ouro”.
Contudo, com o Grito do Ipiranga e a chegada de novos emigrantes de origem polonesa, alemã, libanesa, nipónica,italiana, etc, o crime original (a invasão e ocupação de território indígena) não fica sanado!
Tanto quanto é do meu conhecimento nenhum emigrante pós-independência teve carta de chamamento emitida pelos povos indígenas (que continuam sendo os legítimos titulares do território brasileiro), logo os antepassados de um Emerson Fittipaldi, Michel Temer, Dilma Rouseff, Gisele Bündchen ou Jair Bolsonaro quando vieram para o Brasil também invadiram território alheio. Os meus antepassados galegos tenho a certeza de que não receberam convite algum de nenhum povo indígena para emigrarem, no século XIX, para o Estado do Rio de Janeiro.
Com esta linha de pensamento levada a cabo pelos povos indígenas e que se justifica face à nova posição da Sociedade Brasileira se coloca um novo problema: o princípio à autodeterminação dos povos.
Mas porque é um problema? Vejamos;
O princípio da autodeterminação dos povos foi um dos baluartes das potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial. Sendo ainda um dos princípios anteriores à Organização das Nações Unidas tendo sido logo definido como princípio basilar de Carta do Atlântico ratificada entre o Reino Unido e os Estados Unidos da América em 1941.
Como definição o princípio à autodeterminação dos povos é aquele que garante a um povo o direito de se autogovernar, realizando as suas escolhas sem intervenção externa, exercendo soberanamente o direito de determinar o próprio estatuto político.
Em outras palavras, é o direito que um povo tem de escolher como será legitimado o direito interno sem influência de qualquer outro país ou comunidade. É este ponto que merece relevância neste contexto.
Ao ser admitido que houve uma ocupação por parte de Portugal de todo o território brasileiro e que este pertencia de forma integral aos povos indígenas brasileiros não será de todo descabida a discussão sobre a aplicação deste princípio as tribos Indígenas do Brasil. Especialmente quando consideramos que esta questão já foi discutida noutros casos – nomeadamente no polémico caso do povo Saaruí que habita a região do Saara Ocidental.
Principalmente quando existe uma linha política do Estado em que este reconhece que desde 1500 o que aconteceu foi uma política de ocupação de todo o território brasileiro.
Ocupação que conforme é sugerido foi levada a cabo em primeira instância pelos portugueses e num segundo momento pelos Governos brasileiros que se seguiram e que em momento algum reconheceram o direito dos povos Indígenas ao território brasileiro, logo 7 de Setembro de 1822 - nesta perspectiva de ocupação ilegítima de territórios indígenas - passa a não ter relevância política alguma!
Esta linha de pensamento que pretende reescrever a História parece que poderá se revelar um problema para, num futuro (muito) próximo, os Governos brasileiros terem de resolver situações algo complexas.
Termino lamentando o fato de, como luso-brasileiro e apesar de também me chamar Manuel, não sou padeiro, mas sei ler e escrever e ganhei o hábito de pensar um pouco...
Post Scriptum: Neste preciso momento, apesar dos protestos dos indígenas contra o Projeto de Lei, o presidente Jair Bolsonaro (como sempre foi seu desejo) pediu ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), prioridade na aprovação do Projeto de Lei que trata da liberação da mineração em terras indígenas... FANTÁSTICO!